quarta-feira, 15 de julho de 2009

Devir

Assistia desinteressado ao programa sobre a formação e hierarquia em uma colônia de formigas quando, olhando bem para a tela do aparelho de televisão, descobriu uma nódoa, pôs-se a pensar o que teria deixado aquela mancha que ele não conseguia remover, mesmo quando esfregava o dedo com força. Enquanto esfregava o anelar da mão direita com força contra a fria superfície do eletrônico lembrou-se o que, mesmo já não existindo e já não mais esvoaçando ao seu redor, deixara ali sua marca, o indício de sua passagem, seu signo. Um mosquito. Como um pequeno e infame mosquito poderia deixar marca tão forte, tão aderente e tão incomoda?, pensou consigo, como algo tão insignificante pôde tirar sua atenção do programa e encaminhá-la para a tela de seu televisor novo, com 49 polegadas, como aquele ser infecto se atrevera a morrer ali e ainda, assim, em morte incomodá-lo?
Enquanto refletia sobre o atrevimento do inseto, sua pequena sobrinha, com cerca de quatro anos, parou de brincar com seus lápis de cores e ficou a observar o tio em sua pesquisa, que tipo de coisa faria com que ele ficasse tanto tempo com a face tão perto da televisão e a observando de maneira tão atenta?, seria esse o pensamento da criaturinha se tivesse idade o suficiente para formulá-lo. Passado alguns poucos minutos aproximou-se dele e começou a observá-lo melhor, sem que ele percebesse, notou que ele não fazia nada mais que olhar para uma sujeira na tela de sua TV, coisa sem importância.
Ele esfregava freneticamente seu dedo anelar sobre a nódoa, esfregava e esfregava, enquanto pensava que seu novo televisor iria ficar, já tão cedo, com uma mancha, e começara a se perguntar porque matara aquele inseto ali, poderia tê-lo mandado para longe, tangido, afastado, mas não; em sua fúria por ter sido incomodado, durante um Fla-Flu nem pensou na conseqüência de seu ato.
Uma mancha enorme, porque a esta altura ela já estava tomando toda a sua alma, tirando a sua paz, por um momento impensado perdia sua tranqüilidade naquela tarde de domingo, parou, respirou e quando pensou em pegar uma esponja e água para lavar a tela do aparelho, percebeu que muitos atos impensados na vida trazem nódoas que duram muito, mas muito tempo mesmo, algumas eram até impossíveis de tirar, crônicas, eternas, lembrara que muitas vezes dissera palavras duras a entes queridos e que mesmo com um pedido de desculpas elas não desapareciam, não havia alvejante que desse conta. E ele? quantas vezes não tinha ouvido palavras ou ainda sofrido ações que lhe jogaram lama no coração e pior no orgulho?, esse nunca se permitira lavar. Pensando bem, não tinha motivo algum para matar aquele mosquito, afinal, o animal nada lhe fizera, só estava seguindo o seu instinto, tentando fazer o reconhecimento do local, do novo ser que encontrara. Deus o que fizera? tirara a vida de uma inocente criatura, escandalizado com sua atitude e percebendo agora que seu rosto refletia na TV, sussurrou para si “assassino”, olhou para os lados e tão desconfiado estava não notou que a criança o observava cada vez mais curiosa, segurando um dos seus lápis na mão esquerda ela esperava que ele se afastasse do televisor e voltasse a normalidade. O tio absorto em seus pensamentos cria agora que era um monstro, um covarde. Afinal, matara um pobre e indefeso mosquito, o que estaria agora fazendo aquela frágil criatura se ele não a tivesse matado? Que ser vil ele se revelara, dava graças aos céus por sua boa mãezinha não ter vivido para ver aquele momento e se martirizava agora pela vida do ser que, há dois minutos, maldizia a existência.
Dando-se conta da presença da menina recolhe seus pensamentos assustado e vê a pequena aproximar-se de seu objeto de louvor, pôr o dedo indicador na boca, umidecê-lo, esfregar levemente a tela da TV e voltar a brincar no canto da sala com seus lápis coloridos; em dois segundos a tela voltou a reluzir, sem demonstrar que fora em algum momento, um instante sequer, molestada, maculada, enodoada pelos restos mortais do mosquito. Ele olha para aquilo incrédulo, como não cogitara isso antes? Recostou-se no sofá, apanhou o controle remoto e pensou: “Maldito mosquito me fez de bobo, mereceu morrer”.

Mirla Menezes

4 comentários:

  1. muito bom, mirla!
    isso me fez lembrar de uma coisa que uma pessoa me falou:
    "tem coisas que não voltam jamais!
    1ª A palavra depois de proferida.
    2ª A pedra depois de jogada.
    3ª A tapa depois de dada."

    e eu acho que a pessoa que me disse isso, tem razão.
    o que diferencia o homem dos demais animais, é o poder de raciocinar antes de agir por impulso. e nem sempre usufruímos desse poder.

    gostei muito mesmo!!!!!

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  2. verdade Ge, usufruímos muito pouco do que nos dão!!!
    brigada pela visita. :)

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  3. engraçado, o seu texto me fez pensar sobre coisas, e sobre nódoas: pensei o quanto nós fazemos mosquitos virarem monstros, muitas vezes, de sete cabeças; pensei na condição da vida: que animais somos nós, as coisas que adiantamos e as que não podemos fazer voltar. é tanta filosofia, é puro devir, mas antes de tudo, é instinto. somos antes de tudo tipos (e tipos) de instinto. o protagonista do seu texto tem o tipo HUMANO. gostei, mirla lispector.

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  4. kk exagerado o menino [Lispector????].. rsrsr
    obrigada pela visita uirapuru!!!!!

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